quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Meu amigo visionário


Estávamos na sexta série
e devíamos apresentar um trabalho.

Meu amigo teve uma ideia
acabei por acatar
sem saber muito porquê,
mas já não me importa.

Vamos cantar – disse ele
uma música muito boa,
deu a letra e ensinou
parte a parte.

No dia certo fomos lá
na frente dos outros
um papel na mão,
a melodia na cabeça,
as pernas tremendo um pouco,
a voz desafinada.

Abandonei o coral aos onze anos
e pensava nas brincadeiras infantis,
os jogos e piadas meio tontas.

Meu amigo não,
meu amigo era um visionário,
sabia de outras coisas.

Só percebi depois
e hoje vejo ainda mais.

Na frente da turma
aos onze anos
com medo e vergonha
começamos e nunca esqueci:
“Quando está escuro
e ninguém te ouve...”

Eu ainda era criança,
mas tinha um amigo visionário.

Não me lembro seu nome,
mudei de escola
e nunca mais o vi.

Anápolis, 19 de setembro de 2019.

sábado, 7 de setembro de 2019

Sete de setembro

Não se engane,
sempre tivemos entre nós
facínoras despudorados
nos bares com cervejinhas,
nas festas de Natal,
nas reuniões de condomínio,
por aí.

Parece, não sei bem,
isso se disfarçava
– um pouco –
pela nossa alegria,
o desejo de sermos bons,
o sonho do Brasil
país do futuro,
potência simpática.

A gente tinha o samba,
a seleção de 82,
a Amazônia toda verde,
os índios do Xingu.

Um pouco depois
tínhamos sonhos bons,
as crianças nas escolas,
os jovens fazendo faculdade,
a ciência brilhando,
ninguém com fome entre nós.

Os facínoras se calavam,
seu ódio envergonhado
se adoçava de outras coisas.

Agora os sonhos são outros,
matar os desajustados,
chicotear os pretos no tronco,
queimar e cortar a floresta,
destruir educação e ciência.

Acabou a mamata!

Somos um novo país
cheio de bons patriotas
que cantam sem entender
nosso esplêndido hino
nos jogos de futebol.

Voltamos no tempo,
parece,
mas não.
Nosso melhor desenho,
nossa foto no espelho,
são os comentários malditos
nas matérias mais absurdas
publicadas na rede mundial
e também as mentiras
nos grupos de zap zap.

Celebramos a ignorância,
abraçamos o ódio,
vamos para a guerra,
é nossa religião.

Os facínoras,
sempre entre nós,
estufam o peito
e discursam malfeitos
em rede nacional.

É o Brasil,
meu Brasil brasileiro!

Para todos nós
no pesadelo de olhos abertos
infeliz dia da independência.

Anápolis, 7 de setembro de 2019.

sábado, 24 de agosto de 2019

Colheradas de desgosto


Como colheradas de desgosto
no café, almoço e janta,
todos os dias deste ano.
O prato sempre cheio,
já conheço o tempero,
mas nunca me cai bem.
Vou sorvendo sem querer
colheres muito cheias
de vergonha, raiva e ódio.
Sinto o estômago pesado,
o sangue um pouco sujo
e dor no coração.

Quanto tempo nos resta
desse amargo na boca,
quando vamos respirar
fora dessa névoa empesteada,
até quando valerá
a proibição dos sonhos,
quando os jovens vão se amar,
os velhos vão sorrir,
e a gente – no meio do caminho
vai viver pensando
vale a pena,
quero tudo outra vez...

Meu espírito está amarelo,
a cabeça um pouco zonza,
procuro, e continuo,
assim mesmo, desespero,
uma nota de esperança.

Anápolis, 8 de junho de 2019.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

A ordem virá


Está escrito num texto velho
dê a outra face,
mas a gente se vinga
e faz sinal de arminha.

Quando criança me disseram
para amar o próximo,
mas os novos alunos
escutaram a voz do espírito
gritando bem alto
pra mirar na cabecinha.

No início de tudo,
bem no comecinho,
a gente lê,
depois de seis dias
tudo era muito bom,
devíamos cuidar do jardim,
mas hoje a coisa mudou,
somos nós que mandamos
e resolvemos queimar tudo
abençoados por Deus.

Jesus disse num monte,
os pobres em espírito
são felizes,
mas a gente ensina hoje,
não pode dar o peixe
tem que ensinar a pescar.

Isso é o que mais me confunde:
ele mesmo não deu aos famintos
peixes com pãezinhos?

Já sei, se ele aparecer aqui,
como disse o grande inquisidor,
a gente mata outra vez,
o atirador está a postos
aguardando a ordem
que virá, sim virá,
se permanecermos assim,
em silêncio.

Anápolis, 21 de agosto de 2019.

A bala que encontra


O homem saiu do ônibus
com um isqueiro
e jogou um casaco.

Havia reféns,
sabemos todos.

Seis tiros de elite,
tudo se resolve.

Socos no ar,
marcamos um gol!

Quando será
que uma bala perdida
vai me encontrar?

Anápolis, 21 de agosto de 2019.

sábado, 8 de junho de 2019

2019

O canto da boca
a saliva seca
o amargo dos dias
a sede de amor
os olhos molhados
fechados de medo
o escuro da vida
batendo no ouvido
a esperança escondida
e o tempo passando
o tempo passando
o tempo passando
e a esperança escondida.

Anápolis, 8 de junho de 2019.

terça-feira, 21 de maio de 2019

Quero uma escola opressora

Quero uma escola
com todos uniformizados,
meninos de cabelo bem cortado,
vestindo azul,
meninas de saias bem compridas,
vestindo rosa,
bem quietos,
escutando e repetindo
sem reclamar.

Pra entrar na minha escola
carteirinha, revista,
cabeça baixa,
muros bem altos
concertinas
e snipers, se puder,
pra não sair.

As aulas só de coisas úteis,
ciência sem poemas
leitura sem pensar
matemática mínima,
humanidades, não precisa.

Reprovou, fora,
sem uniforme, fora,
cabeludo, fora,
menina de calça, fora,
questionou, fora.

Câmeras nas entradas,
nos corredores e nas salas
vigiando os doutrinadores,
cada aluno é um espião
em defesa da ordem
velha e gasta.

Os pais não entram,
acompanham tudo em casa,
transmissões ao vivo.

Os filhos desaprendem a vida.

Minha escola é assim
aprendemos a viver
presos.

A vida também fica
do lado de fora.

Anápolis, 21 de maio de 2019.