segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Não há homem que não seja conflito

1.


Não há homem que não seja conflito. Toda filosofia parte senão disso. Quando Thomas, parado em frente a sua janela, pensava em Thereza, isso é nada. É conflito. Estremecemos e escrevemos por isso e essa vida dentro de nós empurra inevitavelmente para um fim. Em sua loucura Nietzsche gritava aos prantos para as paredes e pensava em sua mãe, no seu tempo de criança, numa casa sem nenhuma parede, sem teto nem chão.

Platão buscou a sabedoria nos outros, e aqui chegamos numa outra questão inevitável. O outro. Os poetas, os sábios e os idiotas. Sempre. Sempre buscamos outro. Sempre. A repetição é inevitável.

O Conflito e o Outro. Eis em duas palavras a essência humana. É o homem dissecado que surge entre nós e para nós sem nenhuma incompreensão. Não é arrogância dizer que a essência humana foi desvendada. Não, se for verdadeira a elucubração. Até mesmo o Cristo afirmou sobre si mesmo que era humilde, e isso só não seria orgulho se fosse verdade.

A investigação sobre mim e sobre a humanidade escapa da arrogância por dois motivos. O arrogante em geral se debruça sobre si mesmo e não vê nada além de sua própria imagem no espelho. O ser humano é arrogante em seu conjunto. De certa maneira isso não é ruim, pois o leva a compreender a si mesmo e, por conseqüência, o outro. Por outro lado quando o arrogante é um e só, ele será um arrogante individual e estará totalmente impossibilitado de alcançar o outro. Esse é o paradoxo da arrogância. E do paradoxo da arrogância surge o conflito.

Aqui pareço cair em contradição, mas essa é também uma falsa contradição. Se a busca do outro, feita de qualquer forma, constitui a essência humana, como pode o arrogante se debruçar somente sobre si mesmo? Não significa que o outro não existe. Seu outro é ele mesmo, mas no espelho. O arrogante não passa então de um observador de reflexos. E é o mais confuso dos homens, pois observando os reflexos, quando muito, pensa que olha somente para si, mas nunca se dá conta que está buscando desesperadamente os outros, e que isso lhe é vedado por sua própria arrogância. O arrogante nunca desvenda completamente a sua própria arrogância. Tem uma necessidade absurda de que outros lhe tirem o véu. Nem dessa necessidade se dá conta, e se ela for posta bem em frente à sua face, a rejeitará como a mais desprezível das idéias.

O segundo motivo é que a investigação não responde absolutamente nada. Apenas detecta. Se houvesse chegado a uma resposta aí sim seria arrogante. Mas não, tudo leva ao conflito. É só passar por si mesmo e passar os olhos pelo mundo, com leveza, que o conflito lança pesos. O homem que não busca o conhecimento esquece o que já aprendeu. O impulso de toda busca é o conflito. O término do conflito significa um fim sem retorno, o fim completo de si.



2.


Somos todos marionetes de um Deus fora do mundo. Ele dirige nossas ações e, indo além, quando criou todo o universo num estalo, instantaneamente determinou cada ação humana. Determinou também quando cada folha ia cair e quando cada pessoa ia morrer. Tudo o que fazemos no mundo não faz a menor diferença. Tudo o que queríamos, fazer diferença, é simplesmente impossível. Estou escrevendo. Quero deixar minha marca, esperando que alguém leia estas palavras, que alguém goste e lembre de mim. Um elogio. Mas, não, o que eu escrevo já foi determinado naquele estalo inicial, e mesmo quem vai gostar ou não do que escrevo, quem lerá, quais palavras serão escritas e em que lugar, já foi previsto com uma minúcia consciente por algum motivo que desconheço. E o meu desconhecimento, a impossível transcendência dele, as tentativas, tudo é menos interessante que um lançar de dados. Interrompo-me. Abandono a caneta, o papel. Abandono a mim mesmo, enraivecido. As minhas surpresas são obviedades cósmicas. O papel em branco, a pausa e o retorno já estavam também determinados. A minha tentativa de pensar nisso não passa de uma tolice infinita e recursiva.

Mas e se eu mudasse o rumo das coisas e parasse de pensar nisso. Se eu passasse a dizer que, na verdade, tudo é um grande acaso. O homem e a mulher, feitos um para o outro, aquela amizade perfeita, o suco de pêra dietético, que era melhor que o normal, acaso. Cada encontro é uma série interminável de acasos que só têm sentido porque nós inventamos, para a vida ficar mais bonita. Não. Simplesmente acaso. Calvino, que determinou essa história determinista toda, pensou nisso porque, porque pensou. E tudo se resume em um grande nada. Um aglomerado de seres perambulando nessa terra, reproduzindo-se, agoniados e inconformados que tudo isso - tudo isso já é um sinal de angústia, uma valoração - não tenha sentido. Mesmo a invenção de sentido é ocasional e aleatória. Perambulamos.



3.


Enquanto ele andava era como se o mundo se desfizesse atrás de si e nada mais restasse senão gotas de chuva que deslizavam em meio ao nada, seguindo pistas incoerentes do sentido de seu caminhar. Todas as tolices do mundo desabavam a cada passo. E a cada passo surgia um novo mundo, adiante. O mundo velho eram lágrimas avulsas de angústia, flores que morriam sob nenhuma vista.

Se não existisse o esquecimento seríamos todos reféns dos lírios, lírios brancos de morte e de paixão. Nossa vida são saudades. Se não esquecêssemos, que mundo surgiria adiante? Um mundo de repetições e angústias, e anseios conhecidos. Queremos tanto lembrar, e ao lembrarmos explodimos todos.

No entanto ele caminhava sereno por suas veredas como se seus passos não engolissem o universo, e seu pisar não nos levasse todos ao fim. Passos leves que deixavam profundas marcas, esquecidas numa multidão de devaneios. Pensamentos bons enquanto sussurrava ao ouvido de um cão. Palavras cândidas de pensamentos inocentes.

Pelos campos e caminhos coloridos os cães o seguiam. E as pessoas ficavam para trás, estáticas e desiludidas com suas memórias, desamparadas pelo futuro, chorando a inexistência própria de um caminhar desconhecido.

Sem sentido ele flutuava por sobre as cidades, sobre as cabeças aos milhares. Todos se recusavam a caminhar, já que o caminho era por demais extenso e pesaroso. Com desprezo olhavam o homem que caminhava em sua trilha nova e destrutiva. Não era inveja, nem raiva, nem rancor. Era apenas um não saber, e um desejo desesperado de que parasse. Não lamentavam o fim da própria existência, nem lamentavam o estar parados. Mas carcomiam-se de angústia porque, enquanto isso, ele andava, falava com cachorros e sorria para o céu.

As estrelas uivaram em uníssono, os cachorros borbulharam eternos. O homem seguiu até que não havia mais mundo por onde andar. Estancou seus delírios suaves, afagando os próprios cabelos, como se de uma amada inexistente. Sentou-se sob o nada e pôs-se a pensar. O mundo adiante era imaginário. Imaginou, então, e essa foi sua história, sua vida, seu caminho.